A reforma tributária brasileira deixou de ser “discussão de projeto” e passou a ser realidade: a Emenda Constitucional 132/2023 foi aprovada, já existe lei complementar regulamentando a tributação sobre o consumo (Lei Complementar 214/2025) e o cronograma de implementação começa oficialmente em 2026.
Para quem empreende, isso não é um tema abstrato: mexe na forma de emitir nota, formar preço, controlar fluxo de caixa e planejar o futuro da empresa. Mais do que “saber a alíquota”, o ponto central é entender como essas mudanças podem impactar a operação do dia a dia e o resultado no longo prazo.
Por que essa reforma importa para quem empreende
O objetivo declarado da reforma é simplificar a tributação sobre consumo, reduzir a cumulatividade (imposto sobre imposto), trazer mais transparência e previsibilidade e aproximar o Brasil do modelo de IVA (imposto sobre valor agregado) que já é padrão em grande parte do mundo. Na prática, isso significa substituir um emaranhado de tributos indiretos por menos impostos, com regras mais uniformes e base de cálculo mais clara.
Para as empresas, isso pode significar um ambiente de negócios mais previsível, com menos litígios e discussões tributárias, mas também um período de transição complexo: por alguns anos, velhos e novos tributos conviverão, exigindo ajustes em sistemas, processos internos, contratos e na forma como o gestor enxerga custo, preço e margem.
O novo desenho de impostos sobre consumo
O coração da mudança é a criação do chamado IVA Dual, composto por dois tributos:
- CBS – Contribuição sobre Bens e Serviços (federal),
- IBS – Imposto sobre Bens e Serviços (estadual/municipal).
Eles entram no lugar de cinco tributos atuais: PIS, Cofins, IPI, ICMS e ISS, que serão gradualmente extintos ao longo da transição até 2033. Junto com eles, surge o Imposto Seletivo (IS), voltado a produtos e serviços prejudiciais à saúde ou ao meio ambiente (como bebidas açucaradas, cigarros e alguns itens poluentes), com função mais regulatória do que arrecadatória.
Duas características afetam diretamente as empresas:
- Tributação no destino – IBS e CBS passam a pertencer ao estado e município onde o bem ou serviço é consumido, e não mais onde é produzido, o que tende a reduzir a “guerra fiscal” entre estados.
- Não cumulatividade plena – o imposto incide apenas sobre o valor agregado, permitindo que o contribuinte credite o IBS/CBS pago nas etapas anteriores da cadeia, reduzindo o efeito cascata típico de ICMS e PIS/Cofins atuais.
Isso muda a lógica de cadeias mais longas, interestaduais e com muitos intermediários, que hoje sofrem com forte cumulatividade.
Impactos diretos no caixa e na formação de preços
A transição não será “da noite para o dia”. Em 2026, as empresas começam a destacar nas notas fiscais alíquotas-teste de 0,9% de CBS e 0,1% de IBS, sem aumento efetivo de carga, com o objetivo de calibrar sistemas e o modelo de arrecadação. A partir de 2027, a CBS passa a valer “para valer”, PIS e Cofins são extintos e o Imposto Seletivo entra em vigor. Na sequência, entre 2029 e 2033, ICMS e ISS vão sendo reduzidos à medida que o IBS ganha peso até substituir totalmente esses tributos.
Do ponto de vista do empresário, isso afeta diretamente:
- Formação de preços – com a não cumulatividade mais ampla, empresas que hoje não conseguem aproveitar créditos ao longo da cadeia podem ter redução de custo efetivo de tributo. Outras, que se beneficiavam de regimes especiais, podem ver o efeito oposto. O impacto final em cada setor e modelo de negócio será diferente, exigindo simulação específica.
- Margem e competitividade – quem conseguir se adaptar mais rápido e capturar corretamente os créditos tende a ter vantagem competitiva frente a concorrentes que continuarem precificando “no olho” ou replicando apenas a lógica do sistema antigo.
Além disso, o fato de IBS/CBS serem cobrados “por fora” melhora a transparência: fica mais claro quanto é preço do produto e quanto é tributo, o que ajuda tanto na análise interna de margem quanto na comunicação com o cliente em segmentos em que o imposto pesa bastante.
Tecnologia, compliance e rotina fiscal
A reforma reforça um movimento que já vinha acontecendo: não existe mais gestão tributária séria sem tecnologia. A própria lei complementar que regulamenta IBS/CBS prevê modalidades de pagamento como compensação com créditos, recolhimento pelo adquirente, responsabilidade de plataformas digitais e até mecanismos de “split payment” (parte do valor indo direto para o fisco na liquidação financeira).
Isso significa que os sistemas de emissão de notas, ERP, plataformas de marketplace e meios de pagamento precisarão conversar bem entre si e com a contabilidade. Empresas que ainda dependem de planilha e conferência manual vão sentir mais o peso do compliance: o risco de erro de destaque, crédito ou enquadramento aumenta, assim como o risco de autuações e discussões com o fisco.
Ao mesmo tempo, a padronização de regras entre estados e municípios tende a reduzir a complexidade de critérios diferentes em cada localidade, o que é um alívio para negócios que vendem para o Brasil todo.
Pequenas empresas, Simples Nacional e setores específicos
Uma dúvida frequente é: “Quem está no Simples Nacional vai entrar no IBS/CBS?” A reforma não extingue o Simples, mas prevê regras específicas de interação entre o regime simplificado e o novo sistema de tributos sobre o consumo. Em linhas gerais, o Simples continua existindo, porém, dependendo do tipo de operação, poderá haver destaque de IBS/CBS em separado, além de regras de crédito para quem compra de empresa do Simples.
Isso abre uma discussão importante:
- negócios muito enxutos em margem ou que vendem principalmente para empresas (B2B) precisam avaliar se continuar no Simples seguirá sendo vantajoso no novo cenário;
- setores com regimes específicos, como serviços financeiros, planos de saúde, educação ou locação de imóveis, também terão regras próprias dentro da reforma, com tratamento diferenciado de base de cálculo e créditos.
Em muitos casos, a carga efetiva pode subir ou cair a depender do mix de receitas, uso de insumos, posição na cadeia e possibilidade de tomada de créditos. Por isso, generalizações do tipo “a reforma vai aumentar impostos para todo mundo” ou “vai reduzir para todos” não ajudam na tomada de decisão.
Concorrência, geografia e modelo de negócio
Como a tributação passa a ser mais fortemente no destino, perde força a lógica de escolher estado “mais barato” apenas por incentivos de ICMS. Isso tende a:
- aproximar a carga tributária efetiva entre estados,
- reduzir distorções em operações interestaduais,
- tornar mais relevante a eficiência operacional e a qualidade do produto/serviço na disputa de mercado, e menos a “engenharia tributária” baseada em guerra fiscal.
Para empresas digitais, e-commerce e negócios que vendem para o Brasil todo, isso pode ser positivo: menos surpresas com regras específicas de cada município e estado e maior previsibilidade sobre a tributação incidente nas vendas, ainda que o período de transição exija cuidado redobrado no mapeamento de operações e CFOPs equivalentes dentro da nova lógica.
Como se preparar desde já
Embora muitas regras detalhadas ainda sejam ajustadas e os efeitos concretos só sejam totalmente sentidos ao longo da transição até 2033, há algumas ações que qualquer empresa já pode colocar em prática:
- Mapear a cadeia de valor: entender de onde vêm seus insumos, para quem você vende, qual o peso dos tributos atuais sobre cada etapa e onde hoje você perde crédito por cumulatividade. Isso ajuda a simular cenários com IBS/CBS.
- Revisar sistemas e integrações: conversar com o fornecedor do ERP, emissor de NF, plataforma de e-commerce e meios de pagamento para garantir que estarão prontos para destacar IBS/CBS, controlar créditos e atender às novas obrigações acessórias.
- Revisar a estratégia de preços e contratos: cláusulas de reajuste e repasse de tributos, contratos de longo prazo e políticas comerciais precisam prever a transição, sob risco de corroer margem ou gerar conflitos com clientes.
- Investir em informação e acompanhamento: a regulamentação está sendo atualizada, novas normas infralegais serão publicadas e cada setor terá particularidades. Acompanhar esse movimento faz diferença entre “reagir em cima da hora” e “aproveitar oportunidades”.
Mudança tributária é risco, mas também oportunidade
As mudanças tributárias em curso vão muito além de trocar sigla de imposto: elas reescrevem a lógica de tributação sobre consumo no Brasil, com reflexos em preço, margem, fluxo de caixa, tecnologia, contratos e competitividade. Para alguns negócios, a reforma pode representar aumento de carga se nada for feito; para outros, uma oportunidade de redução de custo tributário e ganho de eficiência. A diferença estará na capacidade de entender as regras, simular cenários e ajustar o modelo de negócio.
Nesse contexto, a contabilidade deixa de ser apenas “quem apura impostos” e passa a ser parceira estratégica para interpretar a reforma, organizar dados, apoiar decisões de regime, simular impactos e orientar a implementação de sistemas e processos. Quanto antes empresa e contador se sentarem juntos para olhar a reforma com calma, maior a chance de transformar uma mudança obrigatória em vantagem competitiva para o seu negócio.


